Case

Sobre cuidados: a quem interessa a sobrecarga feminina?

Imagine que você acaba de receber um diagnóstico. Ele revela uma condição de saúde delicada, que implicará uma perda gradual da autonomia. Nem tudo está perdido, as chances de recuperação são promissoras. Mas ao longo do tratamento, alguém terá que te auxiliar a executar até as tarefas mais básicas. Enquanto tenta assimilar essa novidade indigesta, sua médica apresenta um plano de ação e questiona: “quem você acredita que pode assumir o papel de cuidador?”.

Pense rápido. Antes que compartilhe sua resposta, adianto que não faço a menor ideia do perfil que compõe a sua rede de apoio (e nem se você tem a sorte de ter uma). Não tenho a pretensão de adivinhar qual a idade, grau de parentesco ou intimidade que possui com este alguém. Também não arriscaria dizer o motivo que te levou a pensar nesta pessoa. Caso permita uma única inferência, diria apenas que você cogitou uma mulher.

Parece algo natural, não? A dinâmica social que vivemos reflete a associação entre o cuidar e o feminimo de forma tão genuína que, por mais avançada que esteja a sociedade, ainda seria via de exceção a médica receber um nome masculino como resposta. Essa construção é reforçada dia após dia, nos mais diferentes contextos. Dentro de casa, no ambiente hospitalar, na escola, no atendimento às demandas de crianças, enfermos e pessoas idosas. Elas estão à frente.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua 2022, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, enquanto os homens gastam 11,7 horas (quase metade). A falta de reconhecimento desse trabalho, na maior parte das vezes não remunerado, afeta a participação econômica delas e perpetua as desigualdades de gênero.

Qual sua dor?

Não à toa, a prevalência de esgotamento mental, também conhecido como burnout, é 25% maior entre as mulheres. O relatório “Esgotadas”, da ONG Think Olga, aponta que 86% das brasileiras consideram ter muita carga de responsabilidade. 48% sofrem com uma situação financeira apertada, num contexto em que 28% se declaram como única ou principal provedora do lar e que 57% dessas, entre 36 a 55 anos, são responsáveis pelo cuidado direto de alguém – atividade invisibilizada.

Mulheres negras, que são a maioria entre as chefes de família, as mães solo e as desempregadas, enfrentam situação ainda mais grave. Um pequeno recorte que demonstra o nível de dificuldade para a entrada no mercado de trabalho ou mesmo na vida pública com igualdade de condições, isso sem aprofundar os tantos outros espaços sociais, de influência e de poder, que permanecem dominados por eles, fato que só ajuda a retroalimentar um sistema de privilégios masculinos.

Qual sua responsabilidade nisso?

No fim dos anos 1940, a filósofa Simone de Beauvoir já havia afirmado que ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher. Com a afirmação, ela refutou o pensamento arcaico que usava a biologia para embasar a inferiorização do sexo feminino e as desigualdades sociais entre os gêneros. Faz muito tempo que o bem-estar das mulheres é permeado por questões sociais, culturais e históricas.

Todos têm participação nisso. Afinal, que tipo de sociedade estamos construindo quando elas estão impactadas pelo excesso de demandas a este ponto? Transformar a realidade e interromper esse ciclo envolve discutir e promover políticas públicas, medidas para reconhecer os direitos de quem cuida, valorização da atividade, paridade salarial, além de ações afirmativas e de cunho educativo.

Mais que isso, é preciso um pacto social, com pessoas determinadas a enfrentar esse desafio assumindo a linha de frente, adotando atitudes justas, humanas e inclusivas para com aquelas que estão exaustas. É nossa responsabilidade dialogar, cobrar soluções efetivas, dar exemplos corretos e educar crianças (e adultos) com um olhar solidário, cientes de que tudo que é dividido fica mais leve. E para todos.

Pauta do ENEM

“Desafios para o Enfrentamento da Invisibilidade do Trabalho de Cuidado Realizado pela Mulher no Brasil” foi o assunto definido para nortear a prova de redação do Exame Nacional de Ensino Médio em 2023. Quase 4 milhões de inscritos tiveram a tarefa de escrever sobre o tema. Para quem não prestou o ENEM e não precisou pensar muito sobre o assunto, fica aqui uma reflexão:

O que você faz ativamente para construir ambientes com equidade de gênero e menos sobrecarga para as mulheres? Como você reconhece o trabalho delas?

Discurso desconstruído, citação eclética e conhecimento teórico não bastam. Valorize sua atuação, divida o fardo e cuide de quem cuida, na prática.

Reparação histórica: o futuro é feminino (e precisa ser melhor).

*Nadja Cortes é jornalista especializada em comunicação institucional. Integrou a primeira turma de bolsistas do ProUni, selecionada por meio do ENEM. Atua como Executiva de Contas na RS.